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A invisibilidade da questão de gênero entre nós*

quinta-feira, 18 de março de 2010




Lúcia Rincon
Professora da Universidade Católica de Goiás, diretora do Centro Popular da
Mulher de Goiás e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher


Favorecidas por um ideário que procura conceber o magistério como profissão e não como vocação, também as mulheres, a partir da Proclamação da República, vinham conquistando gradativamente sua inserção no processo educacional, fruto de um intenso processo de lutas feministas, travadas durante o século XIX, e também devido à fundação de Escolas Normais no país, visando à formação de mulheres que se tornassem professoras primárias (NAGLE, 2001).

Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres vão se inserir em maior número na categoria de professores, trazendo e assumindo valores da sociedade patriarcal, cultivando e perpetuando esses ideais também em seu ambiente de trabalho. E apenas lentamente os comportamentos iam se modificando rumo à emancipação feminina.

A crescente atuação feminina no mundo do trabalho a partir de 1920, mesmo que em cargos destinados à “natureza feminina”, se dá quando a indústria, o comércio e o setor de serviços necessitam de mão-de-obra que saiba ler e escrever. Em seu trabalho cotidiano, a mulher professora será vista, desde então e até os dias atuais, como mãe, e seu emprego será classificado como extensão do lar.

Mas a participação feminina é ainda inexpressiva, como se constata no próprio documento do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932), no qual, dos 26 signatários, apenas três são mulheres.

As associações de professores(as)

A organização dos/as professores/ as em associação, no Brasil, teve início na década de 1920, ainda que esta categoria, desde o século XVIII, na Europa, já tivesse suas associações e a regulamentação da atividade docente pelo Estado.

A realidade mostra que o Estado procura fixar regras, normas, leis, seleção e nomeação como estratégias de controle e de capacitação dos/as professores/as, segundo as especificidades e as demandas de cada realidade e tempo histórico. Neste sentido, o status da categoria de professor varia segundo a organização política mas também segundo a importância histórica de produção do conhecimento em cada sociedade.

Lutas e propostas demarcaram, então, um novo tempo para a educação brasileira, em uma sociedade que havia crescido economicamente e tinha um sistema educacional arcaico. Na década de 1950, caracterizou-se pelo Movimento dos Professores em Defesa da Escola Pública e da Educação Popular e de Adultos. Buscou-se construir as bases e as diretrizes para a universalização da escola pública. Expressão desse Movimento foi o Manifesto dos Educadores Democratas em Defesa do Ensino Público, de 1959, assinado também por 26 mulheres profissionais da Educação.

Segundo Monlevade (apud: ATAÍDES, 2004, p.16), é nessa década que se identifica a primeira fase de organização de professores/as em associações; e outras duas fases podem ser identificadas: a segunda, de 1964 a 1978, e a terceira, de 1978 a 1989.

Os/as educadores/as brasileiros voltavam sua atenção para os problemas econômicos, sociais e políticos, como o pauperismo, a marginalização e o analfabetismo da maioria da população brasileira. Junto a estudantes e à sociedade civil, os/as professores/as reivindicavam condições de inclusão cidadã dos setores populares, organizando diversos movimentos, que faziam da educação um instrumento de luta pela transformação social.

Os movimentos pioneiros em educação e cultura popular da primeira metade dos anos 60 demonstram que, apesar da crise vivida, educadores/as, estudantes e sociedade civil buscavam alternativas às propostas conservadoras de interesses elitistas.

Com a ditadura militar, somente a partir dos finais da década de 1970 é que os movimentos sociais se rearticulam e ganham o cenário brasileiro com suas reivindicações; e, também, os estudos feministas nas esferas acadêmicas. Os movimentos sociais, rearticulados, entre eles o movimento de professores e o movimento feminista, terão nova característica até então pouco vista nos movimentos sociais organizados no país: a presença marcante das mulheres no espaço público e na luta pelas suas reivindicações.

Realcemos o movimento que começou a se estruturar em abril de 1980, dentro da Primeira Conferência Brasileira de Educação, CBE, em Goiânia (GO), que aglutinou homens e mulheres professores/ as. Preocupados/as com o sucateamento do ensino e com as reformas superficiais elitistas que pretendia o Estado, perceberam a necessidade de se criar um movimento que trouxesse mudanças benéficas à educação.

O nascimento da Anfope

Este movimento aos poucos vai se organizando e, durante o ano de 1983, é realizado o I Encontro Nacional de Profissionais da Educação, em Belo Horizonte, quando se decide nomear o movimento de Conarcef, nome que perdura até a década de 1990. Em 1992, em Belo Horizonte, o VI Encontro transforma-se em Associação Nacional de Formação de Professores (Anfope).

Foi gritante a ausência de discussão sobre as relações de gênero durante o VI encontro promovido pela Anfope. Lembre-se, ainda, que o magistério, e principalmente o ensino fundamental, já era um espaço reconhecidamente de atuação da profissionalização feminina e que esse seminário da Anfope congregou uma maioria de mulheres, todas profissionais da educação. Mesmo assim, e apesar de as bandeiras feministas já se apresentarem como significativas no seio da sociedade, nos Anais desse encontro não há, sequer, uma única referência à especificidade da questão de gênero.

Nos documentos e registros da Anfope, ao longo de duas décadas, não se encontra manifestação alguma sobre a questão da mulher. Não aparece manifesta nenhuma inquietação quanto à “possível” relação entre a presença das mulheres na profissão e sua desvalorização e proletarização; nenhuma manifestação ou indagação sobre uma possível relação entre a desvalorização social do espaço doméstico e a identificação da profissão de professora com os papéis sociais de mães, tias, avós.

Ainda que o magistério, principalmente o ensino fundamental, seja um espaço reconhecidamente de atuação profissional feminina e os encontros realizados pela Anfope deixem isso claro, congregando uma maioria de mulheres, todas profissionais da educação, não encontramos sequer uma única questão levantada quanto à discriminação de gênero. Fica claro que a ideologia dominante vem conseguindo silenciar as diferenças salariais, os empecilhos para o acesso a cargos de chefia, a aceitação de postos de trabalho subalternos, a jornada dupla de trabalho e a falta de estrutura social para a reprodução social/ humana, como creches e escolas de período integral.

Nós, profissionais da educação, dizendo sempre que nos dedicamos à emancipação dos seres humanos e da sociedade, contraditoriamente silenciamos sobre as questões de gênero e sobre as possíveis e cada vez mais demonstráveis articulações, que constituem o universo simbólico que envolve o “ser mulher”, o “ser professora”, a valorização dos/as profissionais da educação e a construção de uma educação emancipatória.

* Artigo publicado na edição nº 7, Revista Mátria, Março, 2009

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