Por Clédisson Júnior e Marcela Ribeiro
No Brasil são comuns as ações, os conceitos, as medidas serem valoradas
de formas distintas. As diferenças coadunam de acordo a orientação
ideológica de quem reivindica ou ataca qualquer preceito.
Historicamente em nosso país as perspectivas ideológicas dominante
sempre foram alinhadas ao poder do capital e suas necessidades de manutenção,
por consequência, aos interesses de pequenos grupos econômicos. A partir da
ascensão de setores progressistas ao poder central do país houve um
deslocamento de pautas anteriormente marginalizadas reorientando o olhar do
poder público para políticas direcionadas as maiorias oprimidas.
Destacamos hoje no cenário político nacional as ações afirmativas para
promoção da igualdade racial como um desses avanços. O Sistema de cotas se
configura na atualidade como um dos principais instrumentos de democratização
das instituições públicas de ensino superior. Trata-se de uma medida de
reparação étnico-racial e promotora de oportunidades para segmentos
populacionais historicamente marginalizados, com centralidade nas populações
negras e indígenas.
Tanta polêmica criada em torno das políticas de cotas raciais por
setores conservadores tem no horizonte a defesa de seus interesses, como por
exemplo a manutenção do ensino superior como centro de formação de quadros
dirigentes todos ligados aos grupos detentores dos meios de produção em nossa
sociedade.
Democratizar o conhecimento e promover um processo de emancipação de
consciência das classes populares, em especial da classe trabalhadora nitidamente
coloca em risco os privilégios desta mesma elite.
Ao defendermos as ações afirmativas não estamos promovendo ineditismos.
Ao optar por uma política de substituição de mão de obra negra escravizada por
de mão de obra assalariada imigrante oriunda da europa no final do século XIX,
o Estado brasileiro ofereceu como incentivo à vinda destes imigrantes porções
de terras cultiváveis para a reprodução de suas vidas, assim como suas moradias
e garantias de empregos.
O pressuposto de que reservas de vagas para afrodescendentes nas
universidades públicas fere a Constituição Federal é uma das mais propagadas
falácias difundidas por setores reacionários que constroem interpretações dos
artigos constitucionais a partir de seus próprios interesses.
A partir do princípio da igualdade regido pela constituição organizamos
nossa intervenção e defesa em torno das políticas de ações afirmativas. Com
base neste princípio, todos/as são iguais diante da lei. O que mais se
observa é a construção de mitos a despeito de tal
princípio apresentar duas interpretações plausíveis e não antagônicas.
O primeiro trata-se do acesso a justiça e o segundo trata da
promoção de garantias de oportunidades iguais. Fruto desta compreensão, o
tratamento dado pelo Estado à indivíduos em situais de desvantagens
políticas, econômicas e social no mesmo patamar que são tratados os demais em
situações de vantagens em relação aos anteriores se configura como um ato de
injustiça.
Na obra Ética a Nicômaco, o filósofo Aristóteles já se preocupava com questões
referentes a equidade. Defendida por vários juristas brasileiros inclusive pelo
coautor da constituição da Primeira República, Ruy Barbosa,
equidade consiste na adaptação da regra existente à situação concreta,
observando-se os critérios de justiça e igualdade.
Além de não ferir ao referido princípio há outro que legitima e nos
instrumentaliza na defesa das políticas de cotas. Sendo este o princípio da
dignidade da pessoa humana, pelo qual está previsto uma série de direitos
dentre eles o direito a moradia, ao trabalho, a EDUCAÇÃO.
As cotas raciais são frutos de uma política de inclusão e justiça social
formulada pelo movimento social negro e apropriada para fins de políticas
públicas pelo Estado e pelas instituições de ensino superior com fulcro no
artigo 206, inciso I, da Constituição Federal, o qual determina como princípio
do ensino, dentre outros, “a igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola”, resultante da autonomia universitária garantida constitucionalmente
pelo art. 207.
O entendimento sobre o fato das cotas não resolverem os problemas
imediatos das disparidades entre negros e não negros em nossa sociedade é
aceito por todos/as. Compreendemos políticas de cotas como uma medida
necessária a fim de promover o amplo debate sobre as distorções históricas no
tratamento dada pelo Estado a população negra assim como a importância de
medidas reparatórias que visem ressignificar o papel deste mesmo Estado frente
à construção de uma sociedade solidaria, justa e socialmente referenciada.
É essencial compreendermos a dívida histórica do Estado brasileiro com o
povo negro. Após a “abolição” da escravidão, os/as negros/as foram postos a
margem da dinâmica de socialização ao passo que trabalhadores europeus foram
trazidos como parte de um projeto de embraquecimento de nossa sociedade.
Naquele período observou-se a formulação de políticas e leis que dificultavam o
acesso dessa grande parcela populacional de ex escravos a direitos, a cidadania
e a dignidade.
Ao divulgarem que promover um processo reparatório com um século de
atraso é simplesmente penalizar as gerações atuais pelos erros das anteriores é
ignorar que as gerações atuais ainda se beneficiam desse histórico de opressão.
A luta e os esforços empreendidos por políticas reparatórias visam
problematizar e dar respostas a um preocupante nível de desigualdade enraizado
em nosso país fruto deste criminoso processo histórico.
São alarmantes os dados sobre a situação da população negra , segundo o
Censo de 2000 a população negra detinha cerca 4% do rendimento do país entre
aposentadoria, salário, programas de renda mínima e aplicações financeiras,
pardos 21,9% e brancos 74,1%.
O panorama do nível superior em 2002, também se apresentou desanimador,
haviam 2 milhões 864 mil e 46 jovens, destes 78,5% eram de brancos, 0,23% de
negros que juntando com os pardos representavam apenas 1,84%. Já na pos
graduação a predominancia dos brancos é de 86,4%, tendo 9,2% de pardos, 1,8% de
negros, 1,9% amarelos e 0,2 de indígenas.
Passado uma década do levantamento destes dados hoje lidamos com uma
tímida, mas significativa alteração nestes índices graças à adoção de políticas
de reservas de vagas a partir de critérios étnico-raciais. Estamos falando de
uma verdadeira revolução na inclusão de segmentos populacionais historicamente
marginalizados nas universidades brasileiras.
Todo esse panorama demonstra como a dívida do Estado com os
afrodescendentes é atual e acumulativa. Evidencia as disparidades sociais e a
cor de quem são os oprimidos, por consequência deixando em evidência a cor de
quem são os opressores.
Há aqueles/as que defendam que as cotas sejam apenas sociais. Com
tudo existe uma necessidade objetiva quanto ao caráter racial das vagas
reservadas. Segundo Bourdieu “desempenho escolar não é resultado apenas da
formação e origem social mas de uma serie de fatores que condicionam sua
participação na escola”, a discriminação sofrida pelas crianças, a violência
psicológica, o racismo na infância influenciam em sua aprendizagem.
É falaciosa a afirmação de que as políticas de cotas agravam o problema
do racismo em nosso país. Essa mesma política promove um enfrentamento direto
ao interesse do conservadorismo e do atraso em continuar hegemonizando o acesso
a academia e a produção do conhecimento cientifico.
Ao analisarmos dados de 2009 que nos apresentam uma radiografia das
instituições de ensino superior no Brasil observamos que o objetivo de
construir uma universidade democrática e reflexo da diversidade étnico-racial
de nossa sociedade enfrenta um desafiador obstáculo no que diz respeito à
composição étnica do seu corpo docente.
Na ocupação das vagas docentes na USP de um total de 4.705
professores/as apenas 5 eram negros/as; na UFRGS dos 2.000 professores/as, 3
eram negros/as; na UFRJ do total de 3.200 professores/as, 20 eram negros/as e
essa disparidade se reproduz nas diversas instituições de ensino por todo o
país. A instrumentalização de um numero maior de negros/as para ocupar estes e
outros espaços em nossa sociedade é estratégico para a construção de uma
sociedade verdadeiramente justa e democrática.
O aprofundamento e intensificação das políticas de inclusão e justiça
social como as cotas raciais são fundamentais para a edificação deste novo
marco civilizatório, uma vez que estas políticas propiciam a inserção de
diferentes realidades ao tecido social e a partir delas são construídas novas
perspectiva, novos referenciais de mundo.
Com base nesta compreensão medidas que democratizem e promovam a
inclusão de estudantes de origem popular, trabalhadores e trabalhadoras no
ensino superior como o sistema de cotas, o PROUNI, o REUNI são essenciais para
o avanço do caráter democrático e emancipatório das políticas educacionais.
Permitindo assim a construção de um modelo de educação que dialogue com todas
as diversas realidades, todas as diferentes juventudes, um modelo educacional
libertário que propicie o salto qualitativo da educação brasileira.
Ao construírem argumentação visando imputar inconstitucionalidade a
políticas de cotas raciais, setores reacionários buscam deslegitimar e conter o
vigoroso processo de democratização e popularização da universidade brasileira.
Ao lado destes assistimos argumentos como o da inversão do sistema
meritocrático do vestibular, e o fato de que as cotas raciais baixam o nível acadêmico
das instituições de ensino, argumento este derrubado pelos recentes dados que
apontam para o sucesso dos/as estudantes cotistas nas avaliações de desempenho,
assim como inúmeros outros argumentos já problematizados e desmistificados
pelas reflexões e formulações do movimento negro, seja atuando na academia ou
na arena pública.
Estamos distantes de vivenciarmos no Brasil a tão falada democracia
racial, mas medicas como as políticas afirmativas nos fazem acreditar e tecer
uma trajetória neste sentido. A vitória que esperamos será fruto das
mobilizações dos setores progressistas de nossa sociedade com centralidade no
movimento negro brasileiro, que compreende a política de cotas raciais como um
verdadeiro salto para o futuro, será essa política o motor deste novo Brasil
que ao olhar para trás em nossa historia não se furtará de construir um destino
melhor para todos e todas.
Nada virá fora gratuita ao povo negro, mas os processos históricos mostram
que somos herdeiros de uma tradição de intensas lutas e processos de
resistência, em nossa constituição identitaria não paira o medo, mas a garra, a
vontade de lutar, a certeza de vencer!
Clédisson Júnior é Conselheiro Nacional de Promoção da Igualdade Racial
e militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra ENEGRECER.
Marcela Ribeiro é Vice Presidenta da União dos Estudantes da Bahia e
militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra ENEGRECER
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