Formado em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e especialista em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Paulo Rogério Nunes é fundador e diretor-executivo do Instituto Mídia Étnica.
O instituto é uma das primeiras e principais referências da discussão sobre a diversidade étnica na mídia do Brasil, país que, como lembra Paulo Rogério, é composto por uma maioria afro-descendente esquecida pelo “mercado” e escondida pela mídia.
Paulo Rogério é também fellow da Ashoka Empreendedores Sociais, tendo seu trabalho reconhecido nacional e internacionalmente como militante do Movimento Negro e na luta pelo Direito à Comunicação.
É articulador do portal colaborativo www.correionago.com.br, gerenciado pelo Instituto Mídia Étnica.Às vésperas da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, Paulo Rogério ajuda a articular o movimento “Enegrecer a Confecom”, que visa “aprofundar a reflexão sobre o combate ao racismo na mídia”.
Nesta entrevista, ele enumera diversas medidas que acredita importante serem defendidas pelos movimentos negro e anti-racistas na Confecom, como a criação de um órgão que fiscalize a diversidade na mídia e o estabelecimento de punições mais duras para os veículos que veiculem conteúdo racista ou que desrespeitem a representação da diversidade da população brasileira.
Atualmente, que avaliação o senhor faz acerca da veiculação de conteúdos racistas ou a violação ao direitos humanos de grupos étnicos na TV, rádio e imprensa brasileira? Algo melhorou desde a promulgação da Constituição de 1988 ?
Apesar dos avanços obtidos após a promulgação da Constituição Cidadã, a imagem dos afro-brasileiros na mídia ainda é, em geral, estereotipada ou manchada de sangue.
A contribuição civilizatória dos africanos para o Brasil é constantemente negada, em nome de uma hipervalorização da estética européia. Ainda hoje, no início do século XXI, somos representados como minoria - em um país que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), terá maioria negra até 2015.
Nunca fomos e não seremos minoria no Brasil. Somente nos últimos anos que as agências de publicidade começaram a perceber que existe um público consumidor negro sub-representado nas campanhas publicitárias e que é tolice não representar a diversidade étnico-racial brasileira em seus anúncios.
Mas, ainda há muito que se fazer na publicidade, no cinema e, sobretudo, no jornalismo. Na realidade, além de leis que coíbam o racismo na mídia, precisamos trabalhar na formação dos profissionais de comunicação que estão saindo das faculdades imbuídos das premissas racistas que estão arraigadas na cultura brasileira.
É preciso que os cursos de Comunicação Social incorporem a questão racial como um debate necessário para a formação de comunicólogos. Sem essa formação educativa e sem uma legislação que seja incisiva na punição dos crimes de racismo na mídia a população negra do Brasil ainda sofrerá muitos anos por conta da invisibilidade e dos estereótipos.
Na sua opinião, o movimento negro brasileiro tem debatido comunicação e mídia de forma devida ou ainda estaria pouco atento à esta dimensão ? O que é preciso fazer para fortalecer este envolvimento?
O Movimento Negro sempre discutiu comunicação, pois sabemos que a mídia é um dos principais setores reprodutores da lógica racista. Se passarmos algumas horas monitorando os programas de televisão, não é difícil encontrar insinuações racistas sutis ou até mesmo explícitas.
A questão é que a comunicação é tradicionalmente uma área cercada por uma aura de glamour, com seus termos técnicos pouco acessíveis aos “não iniciados”. Esse caráter hermético e “sagrado” da comunicação afasta os movimentos sociais que terminam delegando aos seus assessores de imprensa (quando possuem) toda a reflexão sobre comunicação.
Nesse sentido poucos movimentos sociais incorporaram a discussão sobre comunicação como uma agenda estratégica para alcançar seus objetivos políticos. É por isso que o Movimento Negro possui historicamente uma baixa participação nas discussões sobre comunicação o que não o difere de outros movimentos sociais. Mas esse quadro está mudando, hoje várias organizações tradicionais do segmento negro estão participando das discussões sobre a Conferência Nacional de Comunicação e recentemente foi criada uma articulação chamada “Enegrecer a Confecom”, com o objetivo de aprofundar a reflexão sobre o combate ao racismo na mídia.
Participam dessa articulação sindicatos de jornalistas, por meio de suas comissões por igualdade racial, organizações nacionais, ONGs e profissionais independentes de todo o país. A idéia é que antes da realização da Conferência em dezembro tenhamos uma plataforma de propostas do movimento negro para serem discutidas e que após a Conferência essa articulação continue para monitorar a implementação das políticas públicas de comunicação e criar uma rede de cooperação entre as entidades.
O sistema de cotas para grupos étnicos historicamente oprimidos (como afro-descendentes) vem sendo adotado em diversas universidades brasileiras. Isso se tornou um símbolo das políticas afirmativas no Brasil. Passado já esta primeira fase, que avaliação o senhor faz deste mecanismo, quais seriam hoje os seus efeitos reais?
O sistema de cotas é apenas um braço do que chamamos “Ações Afirmativas”. Apesar de tanta polêmica, o que mais interessa ao movimento negro e aos segmentos anti-racistas não é somente o acesso de jovens negros nas universidade, mas a permanência destes, a garantia que terão uma boa formação e, sobretudo, o acesso destes ao mercado de trabalho e/ou pós graduação.
Nesse sentido, é preciso entender que ainda estamos lutando para garantir a primeira fase dessa batalha, o que significa que a sociedade brasileira é mais conservadora do que imaginávamos. Não é por acaso que grandes emissoras de TV, revistas de grandes circulação e sites de prestígio dão tanto espaço para pretensos acadêmicos condenarem o sistema de cotas, e por conseqüência, toda e qualquer ação reparatória para a população afro-brasileira.
Já foi provado que o sistema de cotas tem não somente o efeito prático de garantir a eqüidade no processo seletivo do vestibular, mas que possui um efeito psicológico na vida de muitos jovens negros que acreditavam ser impossível entrar nas universidades públicas sem ao menos tentar. Além disso, o acesso de afro-brasileiro ao ensino superior tem contribuído para melhor diversificar o leque de produções acadêmicas, pois estes jovens trazem a perspectivas de suas comunidades para a sala de aula, e por conseqüência, trazem novos olhares para a produção científica nacional.
Por fim, podemos dizer que, assim como o enfrentamento ao grande latifúndio midiático do Brasil, a questão da inclusão dos negros nas universidades é um desafio muito grande que precisa ser enfrentado, a despeito da reação conservadores dos que querem a manutenção do status quo e da supremacia da branquitude.
O senhor acredita que é necessário estabelecer cotas na programação do rádio e da TV voltadas especificamente para veicular conteúdo sobre as diversas culturas e etnias como os afro-descendentes ou povos indígenas nativos ? Como garantir que essa diversidade seja constante na programação radiofônica e audiovisual?
O Estatuto da Igualdade Racial – que tramita há aproximadamente dez anos no Congresso Nacional – possuía um capítulo de comunicação, no qual exigia uma quantidade não inferior a 25% de atores negros nas produções audiovisuais. Infelizmente, assim como o capítulo que trata das terras quilombolas e o que propõe ações afirmativas na educação, a questão da comunicação foi retirada por pressão dos segmentos conservadores.
Essa foi uma grande perda para o Movimento Negro no Brasil. Apesar disso, sabemos que, mesmo com a legislação coibindo a invisibilidade dos negros da mídia, na prática precisamos, com urgência, de discussão com os produtores de mídia no sentido de convencê-los a mudarem prática e valores.
Não é possível que nem mesmo a TV pública, conforme pesquisa do doutor Joel Zito Araújo, incorpore a questão da diversidade étnico-racial como um valor. Os números mostram que cerca de 90% dos apresentadores e jornalistas das TVs públicas são brancos.
Espero que a Conferência Nacional de Comunicação possa refletir sobre essa negação de nossa identidade e busque se espelhar em modelos já adotados por outras sociedades multirraciais, como é o caso do Canadá, que possui uma agência que monitora a diversidade dos veículos; a África do Sul que, depois do apartheid, entende a eqüidade racial como um princípio; e os Estados Unidos, que já tem uma longa tradição de promover a igualdade racial na mídia.
Esses são modelos disponíveis que precisam ser estudados. O mundo espera do Brasil uma resposta histórica no que diz respeito à inclusão da população negra.
Todos os países que acabei de citar, por exemplo, já elegeram chefes de estado negros, até mesmo a África do Sul que teve um regime considerado o mais racista do mundo. O que estamos esperando?
Em muitos países onde existem sistemas públicos de comunicação, há canais especificamente voltados para veiculação de programação de diferentes etnias ou culturas que constituem suas populações, como é o caso da Austrália (com a SBS). O senhor acha benéfica a existência desses canais específicos ou acredita que tal especificidade é ruim por colocar tais culturas num patamar separado ?
Seja qual for o modelo que adotemos, caso a eqüidade racial e de gênero se configure como um princípio inviolável estaremos no caminho certo. Penso que canais específicos para grupos sociais e étnico-raciais são importantes, pois concentram vozes que estão na mesma sintonia.
Gosto da idéia de termos uma concessão de TV para o Movimento Negro, como espero que tenhamos um canal específico para o movimento LGBTT. Não penso que um canal voltado para discutir as especificidades dos afro-brasileiros não irá colocar a cultura negra em um patamar diferenciado, pois com a nova conjuntura de convergência de mídias e a própria TV Digital, a segmentação será quase uma imposição técnica, o que pode ampliar o número de vozes no debate público.
Porém, mais que tudo, penso ser muito importante que nosso novo marco regulatório possa punir, inclusive com perda da concessão, veículos que promovam o racismo em sua programação e que não possuam o número de negros condizente com a realidade racial do país. Além disso, não podemos pensar em igualdade racial na mídia sem ter em mente que isso implica em repensar as políticas de recursos humanos dessas empresas.
Qual o motivo do jornalismo ser a profissão no Brasil com o menor número de negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE)? Portanto, penso que devemos ter um órgão fiscalizador da diversidade na mídia como existe em alguns países.
Diante da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, que acontecerá de 14 a 17 de dezembro neste ano em Brasília, o Instituto de Mídia Ética tem propostas a apresentar? Poderia nos fazer uma síntese ou nos indicar as principais diretrizes para a relação saudável entre etnias, multiculturalismo e meios de comunicação?
Estamos sistematizando e estudando uma série de propostas elaboradas pelo Movimento Negro em fóruns, encontros e até mesmo em outras conferências como a de Juventude e Igualdade Racial, nessa última, por exemplo, criamos, em 2005, um Grupo de Trabalho que tinha como principal bandeira a necessidade da realização da Conferência Nacional de Comunicação.
Em geral nossas propostas são relacionadas ao fim da invisibilidade dos negros na mídia, a criação de mecanismos para punir o racismo nos meios de comunicação e a necessidade da apropriação das tecnologias de comunicação e informação pela comunidade negra tendo como meta o fim do apartheid digital. A articulação “Enegrecer a Confecom” realizará alguns encontros antes da Conferência com objetivo de criar uma plataforma comum de propostas dos vários grupos e segmentos do Movimento Negro.
Nós do Instituto Mídia Étnica já apresentamos algumas na Etapa baiana da Confecom. Em geral queremos a incorporação da diversidade étnico racial em todas as políticas de comunicação seja na produção, distribuição ou regulação dos meios.
O senhor foi eleito na etapa baiana da Confecom e estará em Brasília como delegado pelo seu estado. No plano regional e nacional,o senhro acredita que esta primeira Confecom pode de fato mudar a comunicação do país? Ou terá efeitos limitados? Que saldo poderemos esperar ao fim deste processo?
Estamos diante de um momento realmente histórico. Nós que militamos no Movimento pela Democratização da Comunicação sonhamos há anos por esse tipo de conjuntura, na qual de norte a sul do país existem mobilizações em torno do tema.
Isso por si só já seria um resultado positivo do processo das conferências estaduais. É claro que isso é pouco, pois esperamos que a Conferência de Comunicação possa dar as diretrizes políticas para a comunicação brasileira. É claro que sabemos que existem limitações objetivas, como o fato dessa mobilização acontecer quando as primeiras luzes do governo começam a ser apagados e que não há garantia, ao que parece, de que as propostas sejam implementadas.
Mas creio que o efeito dessa discussão dentro dos movimentos sociais, ONGs, partidos políticos e demais grupos de interesse possam gerar uma atmosfera de cobrança e mobilização continuada. Além disso, creio que será difícil para os candidatos no próximo ano não tocarem nas resoluções que serão aprovadas na Conferência, o que significa que a discussão sobre comunicação não será mais um tabu.
Mas para que tudo aconteça, será necessário muita articulação dos movimentos sociais e uma entendimento melhor sobre a conjuntura política na qual estamos inseridos
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